top of page
Buscar
  • Foto do escritorJornal Pasquim Guaiás

VARGUISMO E DESENVOLVIMENTO EM PERSPECTIVA, pelo economista Everaldo Leite

OS 70 ANOS DO SUICÍDIO DE GETÚLIO VARGAS E UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA DURANTE E DEPOIS DE SEU GOVERNO

 

Que progresso a era Vargas alcançou? Que relevância ainda tem?


A memória, neste ano, das sete décadas do suicídio de Getúlio Vargas, se apresenta como uma boa oportunidade para revisitarmos a economia brasileira do período em que o gaúcho governou, entre 1930 e 1954. A sua figura e os seus feitos, após tantos anos, ainda merecem grande atenção, curiosidade e atualização. Que país havia antes de Getúlio e qual foi o que ele deixou para as gerações futuras? O que ainda podemos aprender com a economia política do período? Por que, após a crise dos anos 1980, o Brasil resolveu assassinar o getulismo? Getúlio Vargas ainda é relevante? Sem dúvida, a história econômica brasileira contemporânea só é compreensível quando esclarece o processo de desenvolvimento iniciado e operado no governo Getúlio Vargas.

 

De fato, em tempos de desindustrialização e forte liberalismo, observarmos o período Vargas é como distinguir a luz de uma estrela que viajou por quase cem anos (desde 1930), guardando informações de outro tempo e de outro lugar. Quem chegasse a analisar esses “fótons”, enxergaria um país extremamente diferente do Brasil atual. Havia, evidentemente, uma certa modernização nas cidades mais importantes, como o Rio de Janeiro (como indica Ruy Castro em “Metrópole à Beira-mar”) e São Paulo (Semana de Arte Moderna etc.), entretanto, no geral, a nação era fundamentalmente rural, com população pequena, desarticulada, provinciana e movida a escassas tecnologias. Além disso, nunca fora palco de uma revolução burguesa, sendo tocada, aos trancos e barrancos, por oligarquias regionais atrasadas, rurais e conservadoras.

 

Certamente, o poder exercido por Vargas foi determinante na mudança de uma configuração bucólica para um país industrializado e urbanizado. A forte queda no preço internacional do café, por consequência da Crise de 1929, chamou a atenção do presidente para a necessidade de maior estabilidade econômica interna e alimentou suas pesadas críticas à velha ordem, representada pelo liberalismo. Vargas estava atento à nova ordem internacional, que defendia a presença ativa do Estado na condução da economia, e tinha entendido que a chave principal do desenvolvimento seria a industrialização. Ora, enquanto nos EUA e na Europa, lugares de capitalismo maduro, a enorme crise apontava para uma solução que chamamos hoje de keynesiana, no Brasil precisávamos, ao mesmo tempo, de um Estado interventor e de um arcabouço teórico específico.

 

O receituário, de curto prazo, de Keynes para a crise foi o aumento do gasto público em busca do pleno emprego, que ele fosse realizado na produção de infraestrutura, no resgate ao crédito e para elevar o consumo nacional. O keynesianismo (derivado de Keynes), que se tornou hegemônico por trinta anos, consolidou a importância do Estado planejador e interventor, mesmo em tempos de normalidade. No Brasil, por sua vez, a teoria tinha de dar conta de uma indústria nascente e do seu financiamento, sem passar por uma revolução industrial típica, abarcando, ademais, as necessidades de consumo da época, a força de trabalho especializada, assalariada e sindicalizada, e as leis que garantiam a proteção dos mercados nacionais. Nosso arcabouço seria chamado pelos economistas Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares de “modelo de substituição de importações”.

 

Nesse sentido “anticíclico”, Vargas promoveu uma colossal reestruturação trabalhista, concedendo leis protetoras, como jornada de oito horas, repouso semanal remunerado, concessão de férias, regulamentação do trabalho das mulheres e dos menores, previdência social, salário mínimo etc. Todas essas leis foram organizadas na chamada Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como as conhecemos hoje. O Estado, então, lançou mão dos capitais necessários, utilizando ao máximo a poupança interna, criando empresas estatais nos setores básicos, direcionando os investimentos privados, estabelecendo reservas de mercado para a proteção da indústria nascente, criou subsídios, isenções, incentivos fiscais, conduziu a formação de um mercado interno etc.

 

O Brasil que eclodiu com o governo Getúlio Vargas passou logo a se diferenciar do modelo mercantilista de monocultura que caracterizava a economia desde o império, instituindo infraestrutura de transporte, energia, comunicações, produzindo matérias-primas básicas, como o ferro e o aço, o petróleo, as petroquímicas e fertilizantes. O grande empresariado nacional nasceu, indubitavelmente, da realização do Estado. E este, sob a batuta de Vargas, foi quem gerou grandes empresas estatais, como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, o BNDE e a Petrobras. Aliás, tal política de “Estado Empresário” foi seguida por todos os governos brasileiros até o final da década de 1970.

 

“Num período relativamente curto de cinquenta anos, de 1930 até o início dos anos 80, e mais aceleradamente, nos trinta anos que vão de 1950 ao final da década dos 70, tínhamos sido capazes de construir uma economia moderna, incorporando os padrões de produção e de consumo próprios aos países desenvolvidos”, lembram João Manuel Cardoso de Melo e Fernando Novais, em “Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna” (2009). O governo Vargas, evidentemente, ao instituir um modelo de substituição de importações, permitiu os avanços públicos e privados que se verificaram no decorrer daquelas décadas. Passamos, então, a atender a demanda interna, criando uma classe média, uma tecnoburocracia e uma classe empresarial.

 

Todo esse processo, que também abrange as políticas econômicas chamadas heterodoxas, foi inserido no titulado modelo socioeconômico desenvolvimentista. Nos anos Vargas, o progresso virou sinônimo de desenvolvimento e o nacional-desenvolvimentismo se tornou sinônimo de industrialização, emprego, consumo, crescimento, ascensão social, infraestrutura etc. Os benefícios eram abrangentes e cumulativos, chegando à boa parte da população, direta ou indiretamente. No debate econômico, obviamente, todo argumento contrário ao desenvolvimentismo industrial nacionalista soçobrou, em especial, o dos liberais do período, como o economista Eugênio Gudin. Este, de modo ferrenho, “defendia a competição, criticava o espírito mercantilista anacrônico, o excessivo protecionismo alfandegário e o subsídio a empresas ineficientes”, como relata André Lara Resende, em “Juros, Moedas e Ortodoxia” (2017).

 

É evidente que o modelo nacional-desenvolvimentista não era perfeito, fosse pela forte dependência externa, pela não resolução das desigualdades e pouquíssima inclusão dos trabalhadores negros na onda virtuosa de industrialização e urbanização, fosse por não resultar em um verdadeiro desenvolvimento socioeconômico – ao contrário do que vimos depois na Coreia do Sul, no Japão e na China. As ações de Getúlio Vargas deram sim início ao processo, mas, no outro extremo, não deflagraram o “catching up” esperado, isto é, a nação não alcançou uma posição industrial internacional competitiva, geramos poucas tecnologias essenciais, baixa complexidade e jamais saímos da chamada armadilha da renda média – quando se verifica um baixo crescimento crônico da produtividade.

 

Mas, é preciso refletir: se a era Vargas não tivesse existido, com seus sucessos e fracassos, o que seria o Brasil hoje? Talvez, muito mais atrasado do que consideramos que ele seja. A alternativa ao varguismo, para grande parte das elites da época, seria a manutenção de um mundo rural monocultor. Já na década de 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso, ao sancionar uma lei de concessões, se regozijava pelo fim da Era Vargas e a introdução da reengenharia no governo. "É chegado o momento de começarmos a separar a função regulatória e a fiscalizadora, tarefa do Estado, da ação do investimento e da ação de competição", afirmou o então presidente. Esta alternativa colocada em marcha, que dizia ultrapassar a era desenvolvimentista, passou a ser a da continuidade do progresso econômico, mas com menor participação do setor público (ideia de Estado mínimo) e maior liberdade ao setor privado – o que, consequentemente, resultou em crescimento pífio desde então.

 

Ora, as estatísticas de instituições nacionais revelam o gigantismo econômico do período de influência da era Vargas (1947-1980). Sem embargo, o impulsionamento do modelo desenvolvimentista fez com que o PIB brasileiro crescesse 7,4% ao ano nesse período, algo que observamos hoje no desempenho de poucos países asiáticos. Mesmo na revisão de Bacha, Tombole e Versiani (2023), a performance do PIB naquele período continuou sendo bastante expressivo (6,2%). Na década de 1990, com o atestado de óbito da Era Vargas em mãos, o crescimento do país passou a ser muito menor na média anual (menos até que a chamada “década perdida” de 1980) e, entre 2002 e 2022, teve uma média de crescimento de somente 2,2% ao ano. Por lógica, as alternativas à “Era Vargas” se mostraram juízos muito menos brilhantes que o antigo paradigma do nacional-desenvolvimentismo.

 

Na música de Chico Buarque, “Dr. Getúlio”, Vargas “foi o chefe mais amado da nação, o pai dos mais humildes brasileiros, lutando contra grupos financeiros e altos interesses internacionais, e encheu de brios todo o nosso povo”. Não se pode dizer que estava completamente correto (sua licença, poeta), já que os grandes financistas e os interesses internacionais nunca se retiraram de cena no país, pelo contrário, acabaram se unindo fortemente como classe. A globalização econômica, financeira e a cultura chamada neoliberal, ocuparam, por fim, o espaço do desenvolvimentismo na política e na estrutura de Estado desde o breve governo Collor. A indústria deixou de ter a importância fundamental de outros tempos, suprimida pela abertura comercial (fim do “protecionismo”), juntamente com a fixação de um câmbio nada competitivo, após o lançamento do Plano Real, destruindo definitivamente a capacidade produtiva até então alcançada.

 

Daí que, no aniversário de 70 anos do suicídio de Getúlio Vargas, convém perguntar se suas ideias econômicas ainda têm relevância no debate nacional. Atualmente, o desenvolvimentismo tem retornado ao palco público através de discursos que chamamos de novo-desenvolvimentistas, que, como método, se diferenciam da antiga teoria, mas que também objetivam estabelecer uma nova industrialização nacional e o Estado de bem-estar social, com forte redução das desigualdades. O novo embate, entretanto, tem gerado lutas antagônicas e ferinas pelo lado da prática política e no campo das ideias, especialmente após a forte polarização ideológica que assistimos no país. Pelo lado dos ultraliberais, o fantasma do varguismo ainda assusta, sendo tachado de “ideologia comunista”, mas, pelo lado dos novos-desenvolvimentistas, Vargas continua sendo um “espírito de luz” a iluminar o caminho.

 

É importante se dizer que o Estado de bem-estar social, almejado pela nação e pela Constituição Federal, sofreu críticas completamente infundadas na última década, insufladas justamente pela ascensão da extrema-direita no país e no mundo. Elas surtiram efeito na aprovação de uma reforma trabalhista, que mutilou a CLT e precarizou as relações de trabalho, na imposição de uma austeridade fiscal danosa aos mais pobres, nas tentativas funestas de independência do Banco Central, nos anseios venenosos para privatizar serviços públicos essenciais, como educação, saúde e saneamento etc. Os novos-desenvolvimentistas (esses bisnetos do varguismo), posicionados na centro-esquerda, destacam que tais críticas e ações neoliberais estão na contramão do momento histórico, tendo a China, entre outros países asiáticos, demonstrado a relevância de um Estado forte e revelado ao mundo que o bem-estar social ainda é uma finalidade efetiva para o desenvolvimento dos países, como já defendia o nobelizado economista Amartya Sen em “Desenvolvimento como Liberdade” (1999).

 

No Brasil, ter um diagnóstico correto das dinâmicas socioeconômicas do mundo foi uma tradição iniciada por Getúlio Vargas, que conseguiu, em seu tempo, identificar a força das mudanças internacionais e fazer valer o interesse nacional. Isso, entretanto, foi relevante para o país enquanto este desejava protagonismo econômico e soberania, mas não tem sido importante atualmente para a parcela da nação que se contenta com a dependência, a própria passividade e subjugação. O Brasil, neste momento, trava uma batalha intelectual (e pseudo-intelectual) e, notadamente, na política interna, que, no decorrer do processo, deverá frear ainda mais o seu desenvolvimento, aumentando as desigualdades sociais e concentrando renda, riquezas e patrimônios nas mãos de pouquíssimos indivíduos. Isso, na realidade, já é uma realidade inconteste. Infelizmente, estamos nos últimos anos retornando aos solavancos para algo parecido com o período pré-Vargas. Enfim, com pouco consenso no mundo político, o fantasma do Velho sofre.

 



Everaldo Leite é Economista da Câmara Municipal de Goiânia há 19 anos. Foi Economista do Conselho de Desenvolvimento do Estado (CDE/FCO), na Secretaria de Indústria e Comércio do Estado de Goiás. Foi Vice-presidente do Conselho Regional de Economia em dois mandatos. Foi professor de História do Pensamento Econômico e de Introdução à Economia na UniAlfa-GO. Especialista em Políticas Públicas pela UEG.

12 visualizações0 comentário

Comments


Post: Blog2_Post
bottom of page